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O que precisei construir para correr uma ultramaratona numa pista de atletismo (por Carlos Arruda)

  • Foto do escritor: Eric Akita
    Eric Akita
  • há 5 dias
  • 7 min de leitura

Desde a primeira vez que eu calcei o tênis e fui correr lá em 2023, eu sempre soube que isso ia ser algo que ia crescer muito na minha vida. Desde os primeiros treinos, que eram aquelas caminhadas que eu perdia o fôlego ou aquelas dores laterais, até uma coisa que eu ficava muito impressionado: a minha mente e como tudo aquilo era resiliente. E foi aí que surgiu a chama que me alimenta até hoje: o desafio mental.


Não sou uma pessoa competitiva, então me encontrar na corrida foi algo muito complicado. Eu não queria ser o mais rápido da prova e eu não queria ser o que só fica atrás do RP (recorde pessoal). Eu não queria que o meu desafio fosse superar alguém. E nessa busca ali da corrida, eu consegui me localizar muito bem nas longas distâncias. Eu gostaria que o meu desafio fosse interno, mental, não que eu tivesse que superar alguém. Não que eu colocasse a régua e a realidade da outra pessoa sobre a minha. E que isso se tornasse uma batalha, sabe?


E aprendo muito disso diariamente sendo um corredor de longas distâncias. Acima de um corpo preparado e nutrido, temos que ter uma mente resiliente. Uma mente que entende que o maior desafio não é se preocupar com a velocidade do outro, não é ser o mais rápido ou ser o mais absurdo. É se encontrar na realidade e seguir o caminho.


E a oportunidade de participar da Ultramaratona Fênix, uma prova de 6 horas de duração numa pista de atletismo em São Bernardo do Campo (SP), surgiu disso: de um corpo bem preparado, nutrido e, acima de tudo, uma mente muito bem blindada e alinhada. Inclusive, no meio do ciclo, eu acompanhei muito do Biel (Gabriel Barros) lá no Mundial de Ultramaratona e foi um grande incentivo para mim, sabe? É muito legal ter uma figura dessa representando o Brasil e o resultado que ele teve, enfim, foi algo incrível.


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Treino, CLT e estudos: um quebra-cabeça que consegui montar


A preparação para a Ultramaratona Fênix aconteceu junto com outra prova. No caso, a WTR Campos do Jordão, na qual corri 49 km e fiquei em terceiro na minha categoria. Se preparar para uma prova de endurance é um grande sacrifício de muitas coisas, e a principal delas é o tempo. Os treinos são muito longos e, às vezes, a gente não tem tempo no dia pra treinar, então alguns horários são muito complicados, seja muito cedo, muito tarde, ou um horário de sacrifício, onde você poderia estar lendo um livro ou descansando. E eu tive que encaixar isso no meio de uma rotina CLT e na faculdade, na qual eu estou na reta final, realizando meus últimos trabalhos e provas, e tive que encaixar tudo isso. E deu certo.


De primeira, eu pensei que o ciclo de treinamentos ia ficar muito sobrecarregado. Eu fazia muitas coisas no dia. Eu trabalhava até às 5 da tarde, treinava até às 7 da noite e ia para a faculdade correndo. Mas não ficou sobrecarregado. Tudo começou a se conciliar muito bem. Eu acredito que, até por conta dos treinos, eu consegui ser uma pessoa mais resiliente no trabalho e na faculdade.


E a parte da preparação física não tem segredo pra mim. Eu me trocava, calçava meu tênis, pegava minha água e ia correr no Parque Celso Daniel, aqui em Santo André. Ele tem uma pista de cooper de mais ou menos 700 metros e era ali que eu realizava meus treinos. De 5k, 10k, 15k, 20k, 21k… diariamente. Como esse parque fica no centro, também era uma questão de segurança minha, né? Era mais movimentado e tinha luz. O mental também crescia muito nisso porque eu dava muitas voltas no mesmo lugar. E a parte física alinhada ao mental era essencial para o que eu iria desafiar. O dia que perdia o treino, sabia que ia ser complicado. Eu entendo a dor como parte do processo. Então, ter que aturar o físico e o mental cansados também era um treino.


E nunca vi a corrida como um ato chato. Pra mim, acima de tudo, corrida é um ato de meditação. Estar ali concentrado em algo, exclusivamente numa única atividade, sem pegar no celular e sem ouvir alguma música, era uma meditação pra mim, sabe? Eu transitava no tempo, só seguia e no final do treino pensava: “Caraca, acabou rápido!”


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Transe e meditação durante 67 km


A Ultramaratona Fênix já começou desafiadora porque na noite anterior choveu bastante e estava um clima frio e chuvoso. Pra mim, correr na chuva é algo muito prazeroso e eu já estava ciente dessa possibilidade de clima há alguns dias, então já estava preparado. Acordei cedo, fui lá na Arena Caixa de São Bernardo do Campo, onde aconteceu a prova, e, junto com um amigo meu, o Giovanni, montei a minha tenda de apoio, onde ficaria a minha suplementação e onde também seria um ponto de encontro e apoio de alguns amigos que chegariam ao longo da prova. Começou com a largada da prova de 12 horas, quando eu vi o pessoal que iria rodar naquela pista no sol, na chuva e até de noite. E aquilo já me estabilizou de uma forma imensa, sabe? Vi o pessoal ali super focado, já acontecendo a prova mentalmente e isso me ajudou bastante.


E, assim, às 9 horas da manhã, eu largo na distância de 6 horas. E não tenho o que falar das primeiras quatro horas de prova. Eu estava em um estado de transe e meditação tão focado que tudo fluiu muito bem. Fechei as primeiras quatro horas de prova com 117 voltas, mais ou menos 46 quilômetros, e eu estava muito bem. Mas sabia que a prova ia começar a partir daquele momento, a partir da maratona, e que tudo aquilo ia se transformar em algo muito mental, muito cansativo.


E assim aconteceu. Às 4 horas e meia de prova, à 1 da tarde, eu tinha passado já a barreira dos 50 quilômetros, que eu não tinha ainda completado em nenhuma outra prova. E tudo começou a vir muito forte. O cansaço físico bateu muito, vindo, indo e voltando. Uma coisa que ficava era o mental. Nesse momento também começou a chegar mais amigos meus na minha tenda, então eu passava lá, via um pessoal e isso me animava muito. Ver alguém diferente ali e saber que tinha alguém torcendo por mim naquela parte dava muito ânimo. Também tinha outro amigo que estava cuidando das minhas redes sociais, postando sobre os meus tempos e repostando as coisas que o pessoal postava para manter o pessoal que não estava lá informado também sobre a prova. E eu me pegava nesses pequenos momentos, sabe? Sobre os meus amigos que estavam lá, sobre as pessoas que estavam à minha volta, que já tinham rodado ali muitas voltas comigo. E ia acontecendo essa conversa mental. E que me ajudava a passar o tempo.


Aquele estado mental de transe e meditação que eu mantive por boa parte da prova já não existia mais, então tudo começou a me incomodar. O tênis começou a me incomodar, então eu tive que trocar. Os shorts muito frios, a sensação de tudo molhado, a sede e a fome… tudo isso começou a acumular. Isso faltando uma hora e meia para acabar a prova. E foi nesse momento que quem estava ali me ajudou bastante. Torcendo, entregando água e falando palavras de incentivo. Com esses pequenos toques, consegui acumular muita coisa porque aquilo meio que ficava ecoando na minha cabeça e construindo narrativas. Enfim, me ajudava muito!


Então, bem no finalzinho da prova, a cada minuto que passava, o pessoal anunciava que faltava 10, 9, 8, e aquilo ia cada vez pesando mais porque as voltas demoravam muito mais e eu já estava muito cansado. Às vezes, tinha que parar para dar uma andada. E quando deu 5 minutos para acabar, parecia que desabou tudo. Fiquei: “Meu Deus! Eu realmente completei isso!”. Aquilo me revigorou e voltei muito forte para completar a prova. Estava ainda meio desacreditado e meus amigos estavam todos ali no pórtico, me esperando. Eles me abraçaram e eu tava muito tonto ainda, sem conseguir falar alguma coisa. E eu não estava me sentindo nem feliz e nem triste. E sem vontade de chorar, num mood de sentimentos que eu tava muito confuso.


Acabando a prova, voltei à tenda, tomei muita Coca-Cola gelada, comi amendoim e Snickers e tomei um banho de água gelada que me trouxe à vida. Meus amigos pegaram o balde, jogaram em mim e eu fiquei: “Opa! Agora, eu tô aqui de volta.” Muito dessa conexão que me ajudou nesse pós-prova. Eu estava muito perdido mentalmente e ver eles lá foi algo incrível. A parte da Stab (crew de corrida que faço parte) ali é meu coração. Eles foram geral e colocaram muita torcida. E é muito legal ver isso acontecer!


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O que aprendi dando 158 voltas numa pista de atletismo


Aprendi durante essa prova que tudo é volátil. Tinham voltas que eu estava incrível, mas tinham voltas que eu estava horrível. E, nesse meio tempo, tudo trouxe ao mediano. Eu não me sentia a pessoa mais feliz e eu não me sentia a pessoa mais triste. Eu não me sentia a pessoa mais cansada, mas também nem a mais forte, sabe? E isso me fez colocar muito no local de entender como a vida, no geral, funciona e a gente não consegue captar esse sentimento. Na nossa vida pessoal, profissional, enfim. Essa clareza mental dos processos que a corrida traz é algo que eu consigo aplicar muito na minha vida agora. E depois dessa prova, eu paro e vejo algumas situações que eu fico: “Pô! Entendo que agora eu posso estar nesse baixo, mas depois de algumas voltas eu posso estar naquele alto.” Como também foi na pista.


Não existe um sentimento que é eterno e não existe uma volta eterna que eu me sinta bem. E entender esses processos e entender o começo, o meio e o fim é essencial para se encaixar enquanto ser humano, encaixar enquanto um ser que existe químicas que nos controlam em hormônios e que controlam nossa felicidade e alegria. A gente nem sempre vai estar feliz. A gente nem sempre vai estar triste.


E o que eu mais aprendi disso tudo, pessoal, foi isso. Começo, meio e fim. Eu comecei, estou no meio e muito longe do fim.


Carlos Arruda

Analista fiscal, universitário e ultramaratonista

(@carlosrruda)


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Imagens: Leandro Belini / STAB


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